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terça-feira, 29 de março de 2011

COMO JAMES BROWN TORNO-SE UM MILITANTE NEGRO


Say It Loud – I’m Black and I’m Proud
(James Brown, 1968)



Recém-lançado no Brasil, o livro O Dia em Que James Brown Salvou a Pátria (ed. Zahar), do jornalista James Sullivan, biografa o principal formulador do funk norte-americano a partir de um episódio crucial: a influência que o furacão Brown exerceu sobre a população negra dos Estados Unidos nos dias que se seguiram ao assassinato do reverendo Martin Luther King Jr. em 4 de abril de 1968.

Pode parecer a princípio um mero mergulho no passado histórico da nação ao norte. Mas de modo indireto o livro, originalmente nomeado The Hardest Working Man (How James Brown Saved the Soul of America), tem muito a dizer e revelar para leitores do Brasil de 2010, que se acostumam, aos poucos e aos sobressaltos, a encarar questões sensíveis como cotas, políticas afirmativas, reparação, direitos civis, reivindicações de minorias.

A trama gira em torno de um tenso show do cantor e compositor sulista (de Barnwell, Carolina do Sul) na cidade nortista de Boston, um dia após a morte do militante pelos direitos civis Luther King, quando a população negra dos EUA estava conflagrada e ensaiava levantes por vezes violentos país adentro. Após nervosas negociações de gabinete, decidiu-se que a apresentação seria exibida ao vivo (e a seguir reprisada) pela TV local.

Para alguns, esse estratagema teria servido para manter a população em casa, fixada nos quadris do astro pop, garantindo assim a pacificação das ruas da cidade (os tradutores do título em português desmontam ambiguidades e compram essa hipótese, ainda que em 5 de julho de 1968 Brown pudesse no máximo ter salvo Boston, e não a pátria inteira). Para outros, igualmente contemplados no livro, aquele ato significaria a cooptação do cantor pelo poder branco – integrantes do movimento negro deixariam ali de chamá-lo de “Irmão Número 1 do Soul”, trocando a alcunha para “Irmão Vendido Número 1”.

Sullivan documenta a grande viagem empreendida por Brown nos anos 1960, de artista restrito ao público negro a poderoso comunicador e proprietário de três estações de rádio – mas, também, de homem inconsciente de sua própria identidade negra a militante e coinventor do “black power”. Mesmo para quem defende que o Brasil não é racista em 2010, há de doer a constatação crua da discriminação explícita e da segregação profunda vigentes nos EUA nos primeiros anos daquela década, menos de 50 anos atrás. “As celebridades negras costumavam obter mais destaque quando suas personalidades eram menos desafiadoras”, afirma o autor a certa altura.

A questão aparentemente superficial do alisamento capilar aparece em depoimento transcrito da autobiografia do aguerrido ativista negro Malcolm X (assassinado em fevereiro de 1965): “Esse foi meu primeiro passo para a autodegradação, quando enfrentava aquela dor toda, literalmente queimando minha carne, para ter cabelo de branco”. Brown também alisava o cabelo, e só em julho de 1968 adotaria um corte natural (e curto), exigindo o mesmo dos integrantes da banda. “Queria que as pessoas soubessem que uma das coisas que eu mais prezava e à qual renunciei foi o meu cabelo. Era um verdadeiro atrativo para a minha carreira. Mas eu o cortei pelo movimento”, afirmaria mais tarde, segundo Sullivan.

O trauma do assassinato de Luther King motivaria Brown a lançar também sua canção mais engajada politicamente, Say It Loud – I’m Black and I’m Proud (1968). O autor contempla a hipótese de que fosse uma estratégia do artista para reagir à desconfiança gerada pelo show televisionado de Boston. Por outro lado, evidencia que musicalmente o funk de Brown foi se tornando maciço e corpulento na mesma medida em que os movimentos pelos direitos civis dos negros cresciam e tomavam as ruas norte-americanas.

O futuro “Poderoso-Chefão do Soul” progredia e se consolidava enquanto incendiava de orgulho e raça funks como I Got You (I Feel Good) (1964), Papa’s Got a Brand New Bag (1965), a protopolitizada Don’t Be a Dropout (1967), Cold Sweat (1967), Hot Pants (1970), Get Up (I Feel Like Being a) Sex Machine(1970)...

Nesse ínterim, tornou-se um militante incansável a favor da educação para a população negra – sempre demarcando que ele próprio não tivera esse privilégio. Prestou apoio ao governo de Richard Nixon (1969-1974), devido a compromissos assumidos pelo político republicano em relação a ações afirmativas, renda mínima, iniciativas empresariais de minorias e empreendedorismo negro. “Embora o apoio a Nixon tenha deixado alguns de seus melhores amigos perplexos, ele jamais se arrependeu disso”, escreve Sullivan.

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Se temas como esses traçam alguma semelhança com debates do Brasil de 2010, no ano de 1968 daqui a ditadura militar e seu AI-5 sufocavam qualquer respiro para lutas por direitos civis de minorias. Toni Tornado, Erlon Chaves e Dom Salvador foram brutalmente reprimidos quando levaram a cabo um levante funk (e sexy) no Festival Internacional da Canção da Globo em 1970. Jorge Ben homenageou o atuante Muhammad Ali e tateou um “black is beautiful” à brasileira em Negro É Lindo (1971), mas permaneceu tímido e discreto a esse respeito. Wilson Simonal compôs e gravou um Tributo a Martin Luther King (1967), antes mesmo do assassinato do reverendo, e nos anos seguintes ensaiou comandar um “black power” tropicalista – sucumbiu definitivamente em 1974, condenado, preso, encrencado à esquerda e à direita.

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Brown teria mais sorte e longevidade que Simonal, mas morreria decadente em 2006, apequenado por episódios de violência doméstica e prisões por burlar o fisco. “Você paga quando goza de todos os seus direitos. Não gozei dos meus direitos. Não tive essa chance”, justificou-se numa autobiografia.

Percalços à parte, o que o mantém e o manterá vivo séculos afora é o testemunho gravado no calor da perda de Luther King, em Say It Loud – I’m Black and I’m Proud: “Eu trabalhei com meus pés e minha mãos/ mas todo o trabalho que fiz foi para o outro homem/ agora exigimos uma chance de fazer as coisas por nós mesmos/ estamos cansados de bater nossas cabeças contra a parede/ e de trabalhar para os outros”.

Se escravizados e escravizadores ficaram ou não confinados no passado das Américas, cabe à consciência de cada um de nós responder.

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